Por Tarcísio Gontijo Cunha
De um modo geral, as leis que regulam as construções abordam questões comuns como: responsabilidades dos envolvidos, salubridade, segurança, conforto e bem-estar dos usuários, além de infrações e penalidades. No entanto, cada cultura coloca ênfase no aspecto de maior aplicabilidade ao seu contexto natural, histórico ou, até mesmo, legal.
Neste sentido, localidades como Tóquio e Miami, que historicamente foram vitimadas por conflitos naturais – terremotos, tornados e inundações -, desenvolveram seus códigos enfatizando a questão da segurança estrutural e definindo parâmetros construtivos a partir de critérios capazes de permitir a convivência com os conflitos; outras como Nova Iorque, Paris e São Paulo, historicamente vitimadas por conflitos resultantes das relações antrópicas – incêndios, guerras, epidemias -, adaptaram sua legislação edilícia de forma a contemplar a questão da segurança contra incêndio e da salubridade.
No entanto, de uma forma ou de outra, todos os aspectos encontram-se abordados nas regulações edilícias das cidades atuais, seja pela uniformização dos conflitos e desafios ou pelo compartilhamento das experiências vividas e da forma como elas resultaram em avanços nos marcos regulatórios.
A análise da regulação das construções ao longo da história mostra que o princípio mais antigo de controle se deu, primeiramente, sobre a estabilidade estrutural. Por volta de 1700 a.C. foi apresentado na Babilônia o Código de Hammurabi, um corpo de leis esculpido em um bloco monolítico de 2,5m de altura e colocado no espaço público a fim de que todos os habitantes tomassem conhecimento e não alegassem ignorância sobre o que seria exigido deles. Interessante notar como a garantia da estabilidade das construções extrapolou a esfera técnica, sendo tratada no âmbito das disposições civis e penais. Entre os 282 artigos, que definiam os crimes e punições sem possibilidade de explicações ou desculpas, destacam-se seis itens relacionados às responsabilidades dos construtores perante suas construções:
Se um construtor constrói uma casa para alguém e a completa, este alguém deve dar a ele uma recompensa de dois shekels 2 por cada sar 3 de superfície.
Se um construtor constrói uma casa para alguém e, não a construindo adequadamente, ela cai e mata seu proprietário, então o construtor deve ser condenado à morte.
Se matar o filho do proprietário, o filho daquele construtor deve ser condenado à morte.
Se matar um escravo do proprietário, o construtor deve pagar escravo por escravo ao proprietário da casa.
Se estragar bens, o construtor deve fazer uma compensação por tudo o que foi arruinado, e na medida em que ele não construir adequadamente esta casa e ela cair, ele deverá reerguê-la com seus próprios recursos.
Se um construtor constrói uma casa para alguém e, mesmo que ele ainda não a tenha completado, as paredes parecerem cair, o construtor deverá fazer sólidas paredes com seus próprios recursos.” (HORNE, 2007, p. 59 – tradução nossa)
Após Hammurabi, outros dois documentos de grande relevância para a análise da regulação das edificações foram os tratados de Marco Vitruvio Pollio – por volta do ano 27 a.C. – e de Leon Battista Alberti – entre os anos 1443 e 1452. Ainda que esses tratados não tenham se constituído como códigos ou regulamentos com dever de cumprimento, aliaram discussão teórica e a boa prática construtiva em dois momentos históricos nos quais a edificação e a cidade trabalharam em harmonia entre si e com a natureza.
Vitruvio, com o tratado De Architectura, sistematizou em dez livros a lógica de construção de edificações na Roma do Imperador Augusto, desde a escolha do local até a definição dos acabamentos, versando inclusive sobre máquinas de utilização militar ou, mesmo, civil. Seu trabalho trouxe um importante avanço à questão edilícia ao listar algumas preocupações com a integração entre meio construído e meio natural, conforme abaixo:
“Primeiramente, a escolha de um lugar salubérrimo, que fosse elevado, livre de neblina e de geadas, voltado para regiões do céu não muito quentes nem muito frias mas temperadas, evitando-se depois a vizinhança dos pântanos.” (VITRUVIO, 2002, p.57)
“Muradas as cidades, seguem-se intramuros a divisão das áreas entre as destinadas às praças e a orientação das ruas segundo os pontos cardeais.” (VITRUVIO, 2002, p.62)
O tratado de Vitruvio exerceu grande influência sobre Alberti no século XV, fortalecendo o renascimento dos princípios arquitetônicos da Antiguidade Clássica através do trabalho De Re Aedificatoria, que permaneceu como tratado sobre arquitetura até o século XVIII. Esse período coincidiu com o processo de colonização da América, com a consequente formação de novos grupamentos, trazendo um novo momento à regulação das construções, marcada pela proposição de parâmetros construtivos e de assentamento bem definidos. Por volta de 1675, no núcleo colonial de Nova Amsterdã – atual Nova Iorque – regras construtivas para as tipologias arquitetônicas e até mesmo para a locação das edificações foram definidas com base nos critérios estabelecidos pela Dutch West India Company, a partir de princípios de prevenção de incêndio (NOVA IORQUE, 2008). Salgado (1986) informa que, durante o período colonial português, o Brasil e outras localidades sob o domínio de Portugal obedeceram a textos normativos oriundos do reino, agrupados na forma das ordenações – Afonsinas, de 1446; Manuelinas, de 1521; Filipinas, de 1603. Sobre as Ordenações Filipinas, Rolnik (2003) destaca as exigências de distâncias mínimas entre casas, paredes cegas e, até mesmo, fachadas, além do resguardo do “direito de vista” para mar, praias, montanhas e campos.
Com a Revolução Industrial e o surgimento das grandes cidades no século XVIII agravaram-se os problemas relacionados ao adensamento populacional, em particular: (a) as condições precárias de habitação, expressas na ausência de instalações sanitárias, presença de alcovas, superlotação dos quartos de aluguel, entre outros exemplos, (b) a falta de saneamento, através da deposição dos resíduos fabris em córregos e terrenos baldios, no esgotamento ao ar livre, na proliferação de pragas urbanas, entre outros, até (c) a proliferação de epidemias de contato, como tuberculose, sarna e outras doenças transmitidas por animais. Dentro desse contexto surgiram os primeiros estudos na Europa, em especial na França, relacionando os efeitos de fluídos – como água e ar – na transmissão das doenças, encontrando eco nas demais cidades que sofriam à época dos mesmos prejuízos trazidos pelo progresso do sistema industrial e capitalista. E assim, conforme Rolnik (2003, p. 44), o debate urbanístico internacional passou a ser dominado pela temática da higiene, com a França exportando “o paradigma da cidade medicalizada” e influenciando a legislação urbanística e edilícia desde a Inglaterra até o Brasil, a partir da cidade de São Paulo – que se inspirou na lei francesa da higiene residencial de 1850 para compor o Código Sanitário Estadual, em 1894. Desta forma, o contexto recente dos códigos de obras brasileiros começou pela experiência de São Paulo, no século XIX.
Lemos (1989) observa que, com a cidade em crescimento naquela época, a dificuldade na oferta de habitações para a massa proletária levou à proliferação da figura do cortiço, definido como uma “construção composta de inúmeros cubículos iguais entre si e destinada à habitação coletiva, sendo que as instalações sanitárias e os tanques de lavagem de roupa eram de uso comum” (LEMOS, 1989, p.60). Ainda que formalmente combatido pelas autoridades, a falta de uma legislação clara a respeito do cortiço cedeu espaço às decisões personalistas dos fiscais de obras, que permitiram sua construção. Assim, ao tentar resolver o impasse desta tipologia de construção, a medida municipal acabou por legitimá-la.
De fato, com a publicação do Código de Posturas Municipal em 1886, a situação do cortiço passou a ser regulada através de critérios mínimos que deveriam ser observados na sua construção – torneiras para cada grupo de seis casas, latrina a cada duas habitações, pé direito mínimo de 4 metros, soalhos a 50 centímetros do solo, entre outras recomendações -, contrariando as opiniões técnicas e da área médica, que defendiam sua proibição – ainda que os critérios estabelecidos não fossem condizentes com a realidade de um cortiço e já estivessem funcionando como um dificultador prévio para sua instalação na cidade. Porém, Rolnik (2003) destaca que o Código de Posturas, desde sua primeira versão em 1875, trouxe como aspecto positivo a visão da rua como espaço de circulação por excelência, expresso através de artigos que determinavam sua largura mínima, além de exigirem a observância ao alinhamento dos lotes e ao muramento de terrenos vazios, entre outros. Ainda assim, influenciada pela legislação sanitária europeia, e considerando o aumento da imigração estrangeira e das epidemias como fatores agravantes aos cortiços, a legislação paulista promoveu um maior rigor avaliativo sobre as residências operárias, trazendo, por exemplo, o conceito das cubagens mínimas de ar e iluminação por habitantes. Muitas exigências arquitetônicas derivarão desse conceito.
Com isso, ainda na observação de Rolnik (2003), a temática do saneamento foi assumida de forma mais abrangente pelo Estado – com a criação do Serviço Sanitário em 1890 e a publicação, em 1894, do Código Sanitário – e os pobres urbanos passaram a ser responsabilizados pela propagação de epidemias, por meio de seus hábitos de vida. Valendo-se do sanitarismo e visando eliminar essa forma de ocupação marginal das áreas mais valorizadas da cidade, o Estado passou a exercer uma política repressiva, proibindo cortiços – tanto a construção dos novos, quanto a manutenção dos existentes – e admitindo vilas operárias apenas fora da aglomeração urbana. Assim, o redesenho de uma nova cidade foi complementado pelo deslocamento de seus personagens indesejáveis para longe.
É relevante considerar a importância do Capítulo I do Código Sanitário na estruturação urbana através: (a) da definição das larguras mínimas das vias e dos passeios, além de sua declividade longitudinal e transversal, (b) do estabelecimento da necessidade das sarjetas, do tipo de calçamento a ser utilizado e ainda (c) das regras para arborização, iluminação e limpeza urbana. Sobre as habitações em geral, este Código trata desde a preparação do terreno para a obra até as dimensões mínimas dos compartimentos, a forma como devem ser executados encanamentos – para abastecimento de água e esgotamento -, latrinas/fossas, cisternas. O grande foco na questão sanitária se faz presente a todo instante, na solicitação de impermeabilização das áreas molhadas para facilitar a limpeza, na proibição das alcovas e outros compartimentos sem iluminação direta, na definição das cubagens mínimas de espaço por pessoa – conforme o tipo da edificação – e, até mesmo, na recomendação de observância aos ventos dominantes na locação dos espaços habitáveis.
Rolnik (2003) aborda o fato de que já nessa época foi introduzida a prevalência da rentabilidade do solo urbano sobre a questão social da habitação. A autora transcreve longas citações de Victor da Silva Freire onde ele defende, entre outras medidas a redução dos pés-direitos, o consequente aumento do número de andares e a utilização dos porões para habitação – com técnicas diferenciadas de iluminação e ventilação, a exemplo do que ocorria em Londres. Tais medidas poderiam maximizar o lucro público na construção e venda destas unidades mais compactas, uma vez que o Estado despendia grandes somas de dinheiro com hospitais, asilos e prisões para atender a doenças e crimes oriundos dessa classe social. E assim, a “necessidade de pensar a higiene e o rendimento simultaneamente” (ROLNIK, 2003, p. 44) aproximou a legislação paulista mais da experiência urbanística norte-americana do que do modelo higienista francês, colocando em cheque, inclusive, os parâmetros de cubagem mínima de ar por habitante, defendidos anteriormente em função de uma justificativa técnica pautada na rentabilidade. Desde então, consolidou-se como principal característica dos códigos de obras brasileiros o foco no interior das edificações, em detrimento de sua relação com a cidade.
No entanto, dentro do atual contexto da função social da propriedade trazido pelo Estatuto da Cidade, importa considerar que o universo da edificação não é apenas o lote onde ela se insere, sendo de fundamental importância a observância dos demais parâmetros estabelecidos pela legislação urbanística local.
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Notas:
1) Adaptado de: CUNHA, Tarcísio Gontijo. Os códigos de obras: tradições e potencialidades. 2011, 77 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura. Disponível em: <http://hdl.handle.net/1843/BUOS-8T9NAH> Acesso em maio 2021
2) Equivalente a 8 gramas ou a 1/60 litros ou a 1 metro quadrado. Não é possível precisar a qual das três medidas se refere o termo shekel na citação
3) Equivalente a 36 metros quadrados